Licença compulsória
A licença compulsória ou obrigatória de patentes, conhecida como "quebra de patente" significa uma suspensão temporária do direito de exclusividade do titular de uma patente, permitindo a produção, uso, venda ou importação do produto ou processo patenteado, por um terceiro, desde que tenha sido colocado no mercado diretamente pelo titular ou com o seu consentimento.[1]
Esse instrumento é acionado pelo governo do país que concede a patente, intervindo sobre o monopólio de sua exploração.[2] Essa licença é um mecanismo de defesa contra possíveis abusos cometidos pelo detentor de uma patente, ou, para os casos de "interesse público".[3]
Porém, é importante lembrar que o termo "quebra de patente" é erroneamente aplicado à licença compulsória. Diferente do termo quebra de patente, que propõe a ideia de rompimento de contrato, o licenciamento compulsório segue normas estabelecidas em acordos internacionais como no Tratado da Convenção da União de Paris (CUP) de 1883[4] e no Acordo sobre aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), em inglês Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, da Organização Mundial do Comércio (OMC) no ano de 1994.[5][6]
Antes do decreto de uma licença compulsória, o governo proponente deve tentar negociar com o titular da patente. No caso de insucesso dessa negociação, o proponente da licença faz uma declaração expondo a situação que levará ao licenciamento e, após o decreto da licença, deve oferecer ao titular da patente uma remuneração financeira justa pela exploração de seu invento, efetuando o pagamento de royalties.[3][7]
Histórico
[editar | editar código-fonte]O conceito de licença compulsória já constava do Estatuto dos Monopólios do Reino Unido, a base do sistema contemporâneo de patentes, promulgado pelo parlamento da Inglaterra em 1624.[3] Em 1873, no Congresso de Viena para a reforma de Patentes, discutiu-se que o monopólio da exploração da patente deveria ser revisto "nos casos requeridos pelo interesse público".[2]
Na Convenção da União de Paris, em (1883), estipulou-se as regras gerais para concessão de licença compulsória, na tentativa de se fortalecer seu conceito contra os exercícios abusivos de direitos sobre patentes. Porém, as regras específicas e uniformes para a licença compulsória só foram estabelecidas na Revisão da CUP, em Estocolmo, em 1967.[8] O Acordo Trips, assinado pelos membros da OMC em 1994, apresentou em seu artigo 31 as disposições para a licença compulsória. Porém ao invés de utilizar o termo "licença compulsória ou obrigatória", o artigo 31 versa sobre "outro uso sem autorização do titular" explicando se tratar do uso do objeto de patente, pelo governo ou por terceiros autorizados pelo governo, sem a autorização de seu titular.[5][6]
Aspectos Legislativos
[editar | editar código-fonte]As determinações relacionadas à licença compulsória, inseridas durante a revisão de Estocolmo no Acordo da CUP, estão descritas no artigo 5, item A, subitem 1 a 5. Entre essas determinações, o acordo estabelece que cada país terá o direito de adotar medidas legislativas prevendo a concessão de licenças obrigatórias para prevenir os abusos do exercício dos direitos exclusivos conferidos pela patente. Determina, ainda, que a licença obrigatória deverá ser aplicada como uma medida de prevenção do abuso da patente e, só depois de constatada sua ineficiência, deve se partir para a concessão de caducidade de uma patente.[4]
O Acordo Trips, em seu artigo 27.1, determina como matéria patenteável invenções em todos os setores tecnológicos, desde que preencham os requisitos de patenteabilidade. Com essa determinação, os países que assinaram o acordo, entre eles o Brasil, concordaram em conceder proteção patentearia também a produtos e processos farmacêuticos. Para isso, o Brasil, que não concedia proteção para esses inventos antes da assinatura do acordo, teve que modificar sua legislação de propriedade industrial. Assim, a nova Lei da Propriedade Industrial (LPI) nº 9.279/96 entrou em vigor a partir de 15 de maio de 1997.[9]
A LPI aborda a licença compulsória em seus artigos 68 a74. De acordo com a LPI, a licença compulsória deve ser concedida pelos seguintes motivos:
- Artigo 68 §1º - insuficiência de exploração
- Artigo 68 §2º - exercício abusivo
- Artigo 68 §3º - abuso de poder econômico
- Artigo 70 - dependência de patentes
- Artigo 71 - interesse público ou emergência nacional
A dependência entre patentes, abordada no artigo 70, diz respeito à patente cuja exploração depende obrigatoriamente da utilização do objeto de patente anterior. Esse artigo privilegia o desenvolvimento tecnológico, uma vez que permite a utilização da informação de uma patente para pesquisa, mesmo que essa patente esteja sob proteção, para que se desenvolvam novas invenções e, por conseguinte, novas patentes.
No Acordo Trips, o licenciamento compulsório é abordado no artigo 31. Porém, os motivos para concessão do licenciamento não são abordados de maneira específica. O artigo cita que o licenciamento poderá ser concedido nos casos de emergência nacional, outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não comercial.[5][6]
Licença compulsória no Brasil
[editar | editar código-fonte]As políticas de saúde para combate à AIDS e para atendimento aos portadores de HIV do Brasil são políticas consideradas precursoras e elogiadas internacionalmente. Para atendimento aos portadores de HIV, o governo brasileiro sancionou, em 13 de novembro de 1996, a Lei 9.313 disponibilizando a distribuição gratuita de medicamentos antirretrovirais pelo sistema público de saúde.[10]
Porém, com a assinatura do Acordo Trips, em 1994, e a consequente alteração da legislação brasileira de propriedade industrial em 1996, o Brasil começou a conceder patentes de produtos e processos farmacêuticos e não pôde mais fabricar os medicamentos genéricos dos antirretrovirais sem o pagamento de royalties aos titulares das patentes.[11] Esse fato sobrecarregou financeiramente o governo brasileiro.
Devido às dificuldades para manutenção de suas políticas públicas de distribuição de medicamentos, o Brasil começou a estudar a possibilidade de utilização de licenças compulsórias de patentes desses medicamentos. No início do ano de 2001, o governo brasileiro declarou a possibilidade de licenciamento compulsório das patentes do efavirenz e nelfinavir. Em março do mesmo ano, após as negociações com a empresa norte americana Merck Sharp and Dohme, o Brasil conseguiu a redução do preço do efavirenz, conseguindo uma economia anual aos cofres públicos de R$ 80 milhões.[12]
Em relação ao nelfinavir, em 22 de agosto de 2001, após 5 meses de tentativas de negociação com o laboratório Hoffmann–La Roche, o ministro da saúde José Serra chegou a anunciar o licenciamento compulsório de patente do medicamento nelfinavir, alegando situação de emergência devido a impossibilidade de custeio devido aos altos preços do medicamento e interesse público. Após o anúncio, porém, com o aceite de redução dos preços em 40,5% pela Roche, o processo de licenciamento compulsório foi interrompido.[12]
Com a assinatura de um decreto presidencial 4.830, de 4 de Setembro de 2003,[13] o governo brasileiro autorizou a importação de medicamentos genéricos, sem o consentimento do detentor da patente, em caso de emergência ou interesse público. O decreto visava principalmente a compra de antirretrovirais, uma vez que o governo estava em negociações com as empresas detentoras das patentes dos medicamentos lopinavir, efavirenz e nelfinavir, tentando reduzir os custos de aquisição. O decreto assinado ainda autorizava a produção, em grande escala, dos três antirretrovirais pelo laboratório estatal Farmanguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz. Em dezembro de 2003, o governo brasileiro, por declaração do então ministro da saúde Humberto Costa, novamente cogitou a possibilidade de produção do antirretroviral nelfinavir por laboratórios estatais, Porém, desistiu após conseguir a redução dos preços dos medicamentos nelfinavir, lopinavir, efavirenz, tenofovir e atazanavir em negociação com as empresas.
Em junho de 2005, o governo brasileiro pela Portaria 985, de 24/06/2005, considerou o medicamento Kaletra da Abbott Laboratories (lopinavir + ritonavir), um medicamento de interesse público e, portanto, apropriado para licenciamento compulsório. Uma negociação com a empresa, posterior a publicação do decreto, resultou em um contrato com cláusulas que limitavam medidas legais, fixavam o preço do medicamento até 2011 e previam acréscimo de 10% para nova formulação termoestável do medicamento. O acordo com cláusulas abusivas que resultavam em altos preços do medicamento fizeram com que ONGs do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) e da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP) (como ABIA, Conectas Direitos Humanos, GIV, Grupo Pela Vidda/SP, IDEC, GAPA/SP e Gestos), juntamente com o Ministério Público Federal ingressassem na Justiça Federal para obrigar o governo a licenciar compulsoriamente o medicamento Kaletra.[14]
Em 2007, o ministro da saúde José Gomes Temporão declarou como de interesse público o medicamento efavirenz pela Portaria 886, de 24 de abril de 2007.[15][16] As dificuldades do governo brasileiro para manutenção do tratamento de 75.000 pacientes com HIV foram os motivos da publicação da portaria, uma vez que em negociações com a empresa Merck, o Brasil não conseguiu o preço que consideraria satisfatório para aquisição do medicamento. A empresa ofereceu o medicamento efavirenz a um custo de US$1.59 por dose diária a pacientes do Brasil, enquanto o preço do medicamento oferecido para a Tailândia foi de US$0.65.[17] Assim, em 04 de maio de 2007, em uma cerimônia pública, o ministro da Saúde José Gomes Temporão e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinaram o decreto 6.108,[18] promulgando o licenciamento compulsório do efavirenz.
Alguns relatos de licença compulsória em outros países
[editar | editar código-fonte]Diversos países do mundo, entre eles África do Sul, Alemanha, Argentina, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, Indonésia, Israel, Itália, Malásia, Moçambique, Tailândia e Reino Unido, entre outros, já praticaram, pelo menos uma vez o regime de licenciamento compulsório de patentes.[16][17][19] Algumas dessas casos são detalhados a seguir:
- Canadá
Entre 1969 e 1992 o Canadá decretou cerca de 613 licenciamentos compulsórios, permitindo a produção e importação de produtos farmacêuticos sem a autorização dos respectivos detentores de patentes.
- Estados Unidos
Entre os anos de 1960 e 1970 o governo americano produziu e utilizou tetraciclina e meprobamato, para fins militares, sem autorização das empresas detentoras de patentes. Na década de 80 os EUA declararam o licenciamento compulsório da patente de insulina, pertencente à empresa Eli Lilly.
Na segunda metade da década de 1980 até a década de 1990, o governo dos EUA decretou seis licenças compulsórias em resposta ao crescente número de fusões entre empresas, tentando evitar o consequente monopólio do mercado farmacêutico.
No final de 2001, devido aos ataques terroristas com Antraz, os Estados Unidos utilizaram a possibilidade de licenciamento compulsório como ameaça para conseguir a redução do preço da ciprofloxacina em negociações com a empresa Bayer.
- Itália
Em junho de 2005, após investigação sobre abusos de poder contra as empresas GlaxoSmithKline and Merck & Co Inc., o governo italiano ordenou o licenciamento compulsório dos antibióticos imipenem e cilastatina, utilizados em infecções hospitalares, cuja patente pertencia a empresa Merck.
Em 2007, a Itália decretou o licenciamento compulsório da patente do medicamento finasterida, também pertencente a empresa Merck.
- Malásia
Em setembro de 2004, a Malásia instituiu o licenciamento compulsório para importar da Índia, os antirretrovirais didanosina, zidovudina e lamivudina com zidovudina.
- Moçambique
Em 5 de abril de 2004 o ministro da Indústria e Comércio de Moçambique decretou licenciamento compulsório dos antirretrovirais lamivudina, estavudina e nevirapina, que passaram a ser produzidos por uma empresa local.
- Tailândia
Em 29 de novembro de 2006 o governo tailandês anunciou o licenciamento compulsório da patente do medicamento antirretroviral efavirenz, pertencente à empresa Merck. O decreto do licenciamento compulsório anunciava a importação do medicamento da Índia, além da produção local até 2011.
Em seguida, em 25 de janeiro de 2007, o governo da Tailândia declarou o licenciamento compulsório do antirretroviral Kaletra (ritonavir e lopinavir), da empresa Abbott, e do medicamento para doenças coronárias Plavix (clopidogrel), da empresa Sanofi.[20][21]
- ↑ Parágrafo 3° do artigo 168 da Lei 9279/96.
- ↑ a b Gontijo, Cícero. As transformações do Sistema de Patentes - da Convenção de Paris ao Acordo Trips - a posição brasileira. Fundação Heinrich Böll, maio de 2005.
- ↑ a b c Centro de Informação para Inovação- Divisão Química e Farmacêutica. Legislação. Licenças Compulsórias.
- http://www.cipi-qf.org.br/legislacao.asp?tipo=L&legislacao=7 Em falta ou vazio
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(ajuda)
- http://www.cipi-qf.org.br/legislacao.asp?tipo=L&legislacao=7 Em falta ou vazio
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- ↑ Lei 9279, de 14 de maio de 1996[ligação inativa] INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial - Lei da Propriedade Industrial (LPI) (acessado em 20 de dezembro de 2010)
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