Auto de fé
Auto de fé era o ritual de penitência pública de hereges e apóstatas que ocorria quando a Inquisição Espanhola, a Inquisição Portuguesa, a Inquisição mexicana ou outras inquisições decidiam a sua punição, seguida da execução das sentenças pelas autoridades civis. Nos autos de fé, os hereges podiam abandonar a heresia que alegadamente professavam (o que os tornaria "reconciliados" com a Igreja, merecedores de penas leves), continuar fiéis às suas crença ou "crimes" heréticos (eram os "negativos") ou ficar-se por uma confissão julgada incompleta (eram os chamados "diminutos"). Estes dois últimos casos levariam a penas graves, como prisão perpétua, morte pelo garrote ou fogueira.[1]
As punições para os condenados pela Inquisição iam da obrigação de envergar um sambenito (espécie de capa ou tabardo penitencial), passando por ordens de prisão e, finalmente, em jeito de eufemismo, o condenado era relaxado à justiça secular, isto é, entregue aos carrascos da Coroa (poder secular, em oposição ao poder sagrado do clero). O Estado secular procedia às execuções como punição a uma ofensa herética, no seguimento da condenação pelo tribunal religioso. Se os prisioneiros desta categoria continuassem a defender a heresia e a repudiar a Igreja Católica, eram queimados vivos ou garrotados. Contudo, se mostrassem arrependimento e decidissem reconciliar-se com o catolicismo, eram absolvidos.
Os autos de fé decorriam em praças públicas e outros locais muito frequentados, tendo como assistência regular representantes das autoridades eclesiástica e civil. Um auto de fé era uma cerimónia com pompa e circunstância, uma exibição do poderio dos inquisidores.[2] Ao mesmo tempo, uma festa popular, anual e dispendiosa, e o povo que assistia levava petiscos como para um piquenique. [3]
História
[editar | editar código-fonte]O primeiro auto de fé de que há registo foi realizado em Paris em 1242, sob Luís IX[4][5].
A Inquisição portuguesa foi estabelecida em 1536 e durou oficialmente até 1821, se bem que tenha sido muito debilitada com o regime de Marquês de Pombal na segunda metade do século XVIII.
O primeiro auto de fé em Portugal foi em 20 de setembro de 1540, em Lisboa, onde a praça do Rossio servia de local de execução, embora sejam também conhecidos autos no Terreiro do Paço. No Porto houve apenas dois autos de fé, em 1543 e 1544.
Também houve autos de fé no México, no Peru e no Brasil. Há historiadores contemporâneos dos conquistadores (como o guerreiro Bernal Díaz del Castillo) que descrevem alguns casos.
O último auto de fé, após uma condenação pela Inquisição espanhola, envolveu o professor Cayetano Ripoll e decorreu a 26 de julho de 1826. Seu julgamento, sob a acusação de deísmo, durou cerca de dois anos. Morreu pelo garrote, no pelourinho, após dizer as palavras: "Morro reconciliado com Deus e com o Homem".
Na ficção
[editar | editar código-fonte]No livro Memorial do Convento, de José Saramago, cuja ação decorre na primeira metade do século XVIII durante o reinado de D. João V, a personagem Blimunda conhece Baltasar no Rossio, enquanto a sua mãe é julgada num auto de fé, onde é açoitada e degradada.
No romance Goa ou o guardião da aurora de Richard Zimler, cuja ação decorre em Goa, no princípio do século XVII, o narrador e várias outras personagens são humilhados e atormentados num auto de fé.
Na obra Cândido, ou O Otimismo, de Voltaire, o auto de fé também está presente. Cândido e Pangloss são condenados a um auto de fé quando desembarcam em Lisboa, logo após o terremoto.
Ver também
[editar | editar código-fonte]- ↑ Saraiva, António José (2001). The Marrano Factory: The Portuguese Inquisition and Its New Christians 1536-1765. [S.l.]: Brill. pp. 54,74,101
- ↑ Saraiva 2001, p. 100-104, 114.
- ↑ Novinsky, Anita (1982). A Inquisição. [S.l.]: Editora Brasiliense. pp. 66–68
- ↑ Stavans 2005:xxxiv
- ↑ «Auto De Fe». Jewish Virtual Library. Consultado em 13 de novembro de 2020
Bibliografia
[editar | editar código-fonte]- Arouet, Francois-Marie (Voltaire) (1758). Candide
- Dedieu, Jean-Pierre (1987) L'Inquisition. Les Editions Fides
- Kamen, Henry. (1997) The Spanish Inquisition : A Historical Revision. London: Weidenfeld & Nicolson.
- Lea, Henry Charles (1906–1907). A History of the Inquisition of Spain (4 volumes). New York and London.
- Monter, William (1990). Frontiers of Heresy. The Spanish Inquisition from the Basque Land to Sicily. Cambridge University Press
- Novinsky, Anita (1982) - A Inquisição - Editora Brasiliense
- Perez, Joseph (2006) The Spanish Inquisition: A History, Yale University Press. ISBN 0-300-11982-8, ISBN 978-0-300-11982-4
- Peters, Edward. (1988) Inquisition. New York: The Free Press.
- Saraiva, António José. (2001). The Marrano Factory: The Portuguese Inquisition and Its New Christians 1536-1765. -Brill.
- Stavans, Ilan. (2005) The Schocken Book of Modern Sephardic Literature. Random House, Inc. New York
- Whitechapel, Simon (2003). Flesh Inferno: Atrocities of Torquemada and the Spanish Inquisition. Creation Books. ISBN 1-84068-105-5
Ligações externas
[editar | editar código-fonte]- (em castelhano) La Inquisición Española: origen, desarrollo, organización, administración, métodos y proceso inquisitorial
- Chisholm, Hugh, ed. (1911). «Auto-da-fé». Encyclopædia Britannica (em inglês) 11.ª ed. Encyclopædia Britannica, Inc. (atualmente em domínio público)
- «Inquisição e autos de fé»
- «Auto de fé»
- «Inquisição»
- “Sermões setecentistas portugueses de autos-da-fé”, por Paulo Drumond Braga, LisbrosdelaCorte.es (on line), n.º 6 (El Influjo de la Inquisición en la Sociedad y en la Ciencia de España y Portugal. Siglos XVII-XVIII), Madrid, 2017, pp. 223-232.
- "E Cristo é a única voz de todo o mundo": a defesa da Respublica Christiana nos sermões de autos-de-fé da Inquisição Portuguesa, por Luís Fernando Costa Cavalheiro, Dissertação apresentada à obtenção do grau de Mestre, no Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências-Humanas, da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015