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Vênus ao espelho

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Vênus ao espelho
Vênus ao espelho
Autor Diego Velázquez
Data c. 1647–51
Técnica óleo sobre tela
Dimensões 142 × 177 
Localização National Gallery, Londres

Vênus ao espelho ou Vênus olhando-se ao espelho (em castelhano: La venus del espejo) é uma pintura de Diego Velázquez (1599-1660), principal artista do Século de Ouro Espanhol. Concluída entre 1647 e 1651[1] e provavelmente pintada durante permanência do artista na Itália, a pintura apresenta a deusa Vênus numa posição sensual, deitada em uma cama e olhando em um espelho segurado pelo seu filho Cupido, o deus romano do amor físico. A pintura está exposta na National Gallery, em Londres, sob o título The Toilet of Venus ou The Rokeby Venus.

Muitas obras, do clássico ao barroco, têm sido citadas como fontes de inspiração de Velázquez. As Vênus dos pintores italianos, como a Vênus adormecida de Giorgione (c. 1510) e a Vênus de Urbino de Ticiano (1538) foram os principais precedentes. Nessa obra, Velázquez combinou duas poses estabelecidas para Vênus: reclinada sobre um sofá ou cama e olhando para um espelho. Ela é frequentemente descrita como olhando a si mesma no espelho, embora isso seja fisicamente impossível, já que os observadores podem ver sua face refletida na direção deles. Esse fenômeno é conhecido como "efeito Vênus". De certa maneira, a pintura representa a partida, devido ao uso central do espelho e porque ela mostra o corpo de Vênus de costas para o observador da pintura.[2][3]

A Vênus ao espelho é a única obra de nu feminino feita por Velázquez que chegou aos nossos dias. Nus eram extremamente raros na arte espanhola do século XVII, durante o qual a sociedade foi ativamente controlada por membros da Inquisição espanhola.[2][3] Apesar disso, nus de artistas estrangeiros foram intensamente colecionados pelo círculo de frequentadores da corte, e esta pintura foi pendurada na casa de cortesões espanhóis até 1813: pertenceu à Casa de Alba e a Manuel de Godoy, quando era conservada no Palácio de Buenavista de Madrid. Depois foi levada para a Inglaterra para ser pendurado em Rokeby Park, Yorkshire, de onde provém seu apelido Rokeby Venus. Em 1906, a pintura foi comprada pelo Fundo Nacional de Coleções de Arte para a National Gallery. Apesar de ter sido atacada e seriamente danificada em 1914 pela sufragista Mary Richardson, logo foi totalmente restaurada e voltou a ser exposta.

O Hermafrodita Borghese, uma antiga cópia romana, encontrada por volta de 1608–20,[nt 1] de um original helenístico, atualmente no Museu do Louvre. Quando Velázquez esteve em Roma, encomendou um molde de bronze da obra para Madrid.[nt 2]

Não se sabe com certeza quando a tela foi pintada. Alguns assinalam 1648, antes da segunda viagem de Velázquez à Itália; outros afirmam que teria sido pintada durante sua segunda e última viagem à Itália, entre 1649 - 1651. O site da National Gallery e outros autores acreditam ter sido produzida ao redor de 1647 - 1651.[6]

A Vênus ao espelho foi considerada durante muito tempo como uma das últimas obras de Velázquez.[nt 3] Em 1951, descobriu-se que fora citada num inventário datado de 1 de junho de 1651, na coleção particular de Gaspar de Haro y Fernández de Córdoba (1629 - 1687), marquês do Cárpio,[nt 4] um cortesão que mantinha laços estreitos com o rei Filipe IV da Espanha. Haro era sobrinho-neto do primeiro mecenas de Velázquez, o Conde-Duque de Olivares, e um conhecido libertino. Segundo o historiador de arte Dawson Carr, Haro amava a pintura quase tanto quanto amava as mulheres,[10] e até mesmo os seus defensores lamentavam o seu excessivo gosto pelas mulheres de classe baixa durante a sua juventude. Por estas razões, parece possível que ele encomendasse a pintura.[11] Como a pintura estava inventariada em 1651, a tela não poderia ser posterior à segunda viagem de Velázquez à Itália, da qual retornou em junho daquele ano, podendo tê-la pintado ali no final de 1650 ou no princípio de 1651 e remetido à Espanha antes do regresso do artista.[nt 5] Contudo, em 2001, o historiador de arte Ángel Aterido descobriu que a pintura pertencera antes ao marchant e pintor madrilenho Domingo Guerra Coronel, e que foi vendida a Haro em 1652, depois da morte de Coronel no ano anterior.[13] A propriedade de Coronel sobre a pintura suscita uma série de questões: como e quando passou a ser posse de Coronel e por que o nome de Velázquez foi omitido naquele inventário. O crítico de arte Javier Portús sugeriu que a omissão poderia ser devido a se tratar de um nu feminino, um tipo de obra que estava cuidadosamente supervisionada e cuja divulgação era considerada problemática.[9]

Estes fatos fazem com que seja difícil datar a pintura. A técnica pictórica de Velázquez não oferece ajuda, embora a forte ênfase na cor e no tom sugiram que a obra pertença ao seu período de maturidade. As melhores estimativas sobre sua origem apontam para que tenha sido terminada em finais da década de 1640 ou princípios da década de 1650, quer na Espanha, quer durante a última viagem de Velázquez à Itália.[10] Se este for o caso, a espontaneidade e fluidez da execução e a dissolução da forma pode considerar-se marcando o começo do período final do artista.[12] O consciente modelado e os fortes contrastes tonais da sua obra anterior são substituídos aqui por uma contenção e sutileza que culminaria na sua última obra mestra, As Meninas.[14]

Francisco de Goya, A maja nua, c. 1797–1800. Em 1815, Goya foi acusado pela Inquisição espanhola por este trabalho, mas conservou o seu cargo como pintor da corte.

Proprietários

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A pintura aparece inventariada em 1651 entre os bens de Gaspar de Haro y Guzmán e passou depois à sua filha, Catalina de Haro y Guzmán, a oitava marquesa do Cárpio, e ao seu esposo, Francisco Álvarez de Toledo, o Duque de Alba.[15] Esteve entre 1688 e 1802 em poder da Casa de Alba. Em 1802, Carlos IV da Espanha ordenou que a família vendesse a pintura (com outras obras) a Manuel de Godoy, o seu favorito e primeiro-ministro.[2] Este pendurou-a junto com as duas obras mestras de Francisco Goya que talvez o próprio Godoy tenha encomendado, A maja nua e A maja vestida. Estas obras têm óbvias similaridades de composição com a Vênus ao espelho, embora, ao contrário de Velázquez, Goya tenha pintado o seu nu numa tentativa calculada de provocar vergonha e desgosto no clima relativamente pouco iluminado da Espanha do século XVIII.[16]

Durante a Guerra da Independência Espanhola, a pintura foi roubada por soldados franceses do palácio Godoy, no âmbito de saques artísticos, e passou para as mãos de George Augustus Wallis, um pintor britânico, que trabalhou na Espanha como agente de William Buchanan, um importante negociante de arte. A Vênus foi levada para a Inglaterra em 1813, onde foi adquirida por John Morritt, por quinhentas libras, a conselho do seu amigo Thomas Lawrence.[nt 6] que a pendurou na sua casa no Rokeby Park, Yorkshire. Depois foi vendida para a empresa londrina Agnew and Son.

O Fundo das Coleções de Arte Nacionais, criado pouco tempo antes, adquiriu a obra em 1906 por 45 000 libras, para a National Gallery, sendo a sua primeira aquisição triunfal.[nt 7] O rei Eduardo VII admirou grandemente a pintura e anonimamente proporcionou 8 000 libras ao fundo para a sua compra,[20] e tornou-se patrono do fundo.[21]

Danos no quadro resultantes do ato de vandalismo perpetrado por Mary Richardson em 1914, usando um cutelo semelhante ao que é mostrado no canto superior direito da imagem.

Em 10 de março de 1914, a tela foi atacada por Mary Richardson com uma machada curta de açougueiro, uma sufragista militante britânica de origem canadiana. Sua ação foi aparentemente provocada pela prisão da companheira sufragista Emmeline Pankhurst no dia anterior,[22] embora houvesse avisos precedentes de um ataque sufragista planejado sobre a coleção. Richardson deixou sete cortes na pintura, causando danos na zona entre os ombros da deusa na figura.[23][24] [nt 8] Contudo, todos foram reparados com sucesso pelo restaurador chefe da National Gallery, Helmut Ruhemann.[22] Richardson foi sentenciada a seis meses de prisão, o máximo permitido pela destruição de uma obra de arte.[25] Numa declaração que fez ao Sindicato Político e Social de Mulheres pouco tempo depois, Richardson explicou: Tentei destruir a pintura da mais bela mulher na história da mitologia como um protesto contra o governo por destruir a Sra. Pankhurst, que é a pessoas mais formosa da história moderna.[24] Acrescentou numa entrevista de 1952 que ela não gostava do jeito como os visitantes masculinos olhavam para ela todo o dia.[26]

A escritora feminista, Lynda Nead, observou que, embora o incidente chegasse a simbolizar uma percepção particular de atitudes feministas frente ao nu feminino, em certo sentido, acabou representando uma determinada imagem estereotipada do feminismo em geral.[27] Os jornalistas tendiam a falar do ataque em termos de assassinato (Richardson recebeu a alcunha de Slasher Mary, isto é, Maria a Esfaqueadora), e usaram palavras que evocavam feridas que tivesse ocorrido a um corpo real, e não apenas a uma representação.[25] The Times, num artigo que continha dados fáticos e errôneos a respeito da pintura, descreveu uma cruel ferida no pescoço, bem como incisões nos ombros e nas costas.[28]

Restauração

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A pintura foi submetida a uma grande limpeza e restauração entre 1965–66. Na ocasião foi verificado que a pintura estava em boas condições e que pouca cor havia sido acrescentada mais tarde por outros artistas, ao contrário do que afirmavam alguns.[nt 9]

Análise do quadro

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Peter Paul Rubens na Vênus do espelho, c. 1614–15, mostra a deusa com o seu cabelo tradicionalmente louro.[29] Como a Vênus de Velázquez, a imagem refletida da deusa não encaixa essa porção da sua face visível sobre a tela. Em contraste com a bela e arredondada forma ideal de Rubens, Velázquez pintou uma figura feminina mais delgada.[30]

A Vênus ao espelho representa a deusa romana do amor, da beleza, e da fertilidade reclinada languidamente na sua cama, com as costas para o espectador—na Antiguidade, o retrato de Vênus de costas foi um visual erótico e literário comum[30] — e com os seus joelhos dobrados. Assim, Vênus é apresentada sem a parafernália mitológica que normalmente é incluída em representações da cena; são ausentes as joias, as rosas e a murta. Ao contrário da maior parte dos retratos prévios da deusa, que a mostram com cabeleira loura, a Vênus de Velázquez é morena.[29] Quando a obra foi inventariada pela primeira vez, foi descrita como uma mulher nua, provavelmente devido à sua natureza controversa.

A figura feminina pode ser identificada com Vênus devido à presença do seu filho, Cupido. Este aparece sem arco e setas. Cupido, gordinho e ingenuamente respeitoso, até mesmo vulgar, tem nas suas mãos uma fita rosa de seda que está fixada acima do espelho e se dobra sobre a sua moldura. Sua função foi objeto de debate pelos historiadores da arte. Em geral, acredita-se ser uma espécie de atadura, um símbolo do amor vencido pela beleza. Esta interpretação foi dada pelo crítico Julián Gállego, que entendeu que a expressão facial de Cupido era melancólica, de maneira que as fitas seriam uns grilhões que uniam este deus com a imagem da beleza, assim deu à pintura o título de Amor conquistado pela Beleza.[31] Foi sugerido também que podia ser uma alusão aos grilhões usados por Cupido para atar os amantes, também que serviu para pendurar o espelho, e igualmente que se empregara para vendar os olhos de Cupido uns momentos antes.[29]

O elemento mais original da composição é o espelho segurado por Cupido,[nt 10] no qual a deusa olha para fora, e através da sua imagem refletida, interage com o espectador da obra[3][32] [nt 11]

O fato de Vênus estar vendo o espectador através do espelho representa a ideia da consciência da representação, muito característica de Velázquez.[33] E o espectador, por sua vez, pode ver no espelho o rosto da deusa, esfumado pelo efeito da distância, que apenas revela um vago reflexo das suas características faciais. A imagem desbotada é uma contradição barroca, pois Vênus é a deusa da beleza mas esta não se distingue bem. O aspecto desbotado do rosto levou a crer que seja apenas uma mulher feia ou vulgar, uma aldeã em vez de uma deusa, pelo que alguns críticos fizeram alusão à capacidade enganosa da beleza. A crítica Natasha Wallace aludiu à possibilidade da face não distinguida de Vênus ser a chave do significado oculto da pintura, no sentido de que não visa ser um nu feminino concreto, nem apenas um retrato de Vênus, mas uma imagem da beleza absorta em si mesma[34] Segundo Wallace, Não há nada espiritual no rosto ou na pintura. O ambiente clássico é uma escusa para uma sexualidade estética muito material - não do sexo em si, mas uma apreciação da beleza que implica atração.[22]

As pregas dos lençóis da cama difundem a forma física da deusa, e apresentam-se para enfatizar as dramáticas curvas do seu corpo.[3] A composição usa nomeadamente tons de vermelho, branco e cinza, empregados até mesmo na pele de Vênus; embora o efeito deste simples esquema cromático tenha sido muito elogiado, recentes análises técnicas demonstraram que o lençol cinza era originalmente um malva intenso, que acabou por desaparecer.[10] [nt 12]

As cores luminescentes usadas na pele de Vênus são aplicadas com um tratamento suave e cremoso, fundente,[37] que contrasta com os cinzas obscuros e o preto da seda ou cetim sobre a qual ela repousa, e com o castanho da parede atrás do seu rosto.

Velázquez é capaz de criar a noção de profundidade graças à composição. Coloca objetos e corpos uns atrás de outros: os diferentes lençóis, corpo da Vênus, o espelho, o Cupido, a cortina em diagonal, e a parede do fundo, transmitem a ideia de profundidade.[14]

Coroação da Virgem, de Velázquez, c. 1641–42. Foi sugerido que o modelo usado aqui era o mesmo que na Vênus.[nt 13]

Embora se acredite, em geral, que a obra foi pintada do natural, a identidade da modelo é objeto de especulação como ocorre, por exemplo, com a Maja desnuda de Goya. Na Espanha da época, era admissível que os artistas empregassem modelos nus masculinos para estudos; porém, o uso de modelos femininas nuas era mal visto.[38] Acredita-se que a pintura foi executada durante uma das visitas de Velázquez a Roma, e Prater assinalou que na cidade o artista levou verdadeiramente uma vida de considerável liberdade pessoal que resultaria coerente com a ideia de usar uma modelo feminino nu. Têm-se proposto diversas identidades para a modelo. Pensou-se na pintora italiana Lavinia Triunfi, que teria posado para Velázquez em Roma. Também se lançou a hipótese da pintura representar uma amante de Velázquez que sabe que esteve na Itália, com a qual se acredita que teve um filho;[22] Diversos documentos provam a existência de um filho ilegítimo. Aludiu-se à possibilidade de ser a mesma modelo de Coroação da Virgem e n' A fábula de Aracne, ambas no Museu do Prado, e outras obras.

Tanto a figura de Vênus quanto a de Cupido foram significativamente alteradas durante o processo de pintura, e como resultado aparecem as correções do artista a respeito dos contornos que inicialmente pintou.[nt 14]

As partes apagadas da pintura podem ser vistas no braço alçado de Vênus, que estava a princípio numa posição mais alta; na posição do seu ombro esquerdo, e na sua cabeça, que tinha um perfil mais acuado, mostrando um pouco da nariz.[12] A análise termográfica da obra revelou que Vênus estava originalmente mais ereta e com a sua cabeça voltada para a esquerda.[10] Os contornos do espelho e o dorso de Cupido também foram alterados.[12] Uma zona na parte esquerda da pintura, que se estende do pé esquerdo de Vênus até a perna e o pé esquerdo de Cupido, ficavam aparentemente indefinidas, mas esta característica é vista em outras das grandes obras de Velázquez e provavelmente era deliberado.[10] No entanto, MacLaren tem um ponto de vista oposto.[23]

Giorgione, Vênus Adormecida, c. 1510. Giorgione mostra Vênus dormindo sobre finas telas numa ambientação exterior com uma paisagem suntuosa.[39] Como a Vênus de Velázquez, a de Giorgione é, contra a tradição, morena.

Numerosas obras, das artes clássicas ao barroco, foram citadas como fontes de inspiração de Velázquez. Mencionam-se em particular as pinturas de nus e de Vênus realizadas pelos pintores italianos, em especial os venezianos. A versão de Velázquez é, segundo o historiador de arte Andreas Prater, um conceito visual muito independente que tem muitos precursores, mas nenhum modelo direto; os eruditos buscaram-no em vão.[39] Entre os precedentes principais encontram-se a Vênus Adormecida de Giorgione (c. 1510);[nt 15] várias representações de Vênus por parte de Ticiano, como Vênus e Cupido com uma perdiz, Vênus e Cupido com um organista e (destacadamente, a Vênus de Urbino de 1538) o Nu recostado de Palma o Velho. Todos estes quadros mostram a deidade reclinando-se sobre luxuosas telas, embora em ambientes de paisagem nas obras de Giorgione e Palma o Velho.[39] O uso de um espelho colocado no centro era inspirado pelos pintores do alto Renascimento italiano, incluídos Ticiano, Jerónimo Savoldo, e Lorenzo Lotto, que usaram espelhos como protagonistas ativos, em vez de meros acessórios no espaço pictórico.[39]

Tanto Ticiano quanto Rubens já tinham pintado suas versões de Vênus ao espelho e ambos tiveram laços estreitos com a corte espanhola, assim os seus exemplos poderiam ser familiares para Velázquez. Porém, Velázquez opõe-se claramente às exuberantes carnes das mulheres pintadas por Ticiano e Rubens, também executadas na Itália. Esta garota, com a sua estreita cintura e quadril proeminente, não se parece aos nus italianos, mais rotundos e plenos, inspirados pela antiga escultura.[40] Velázquez voltou-se mais aos padrões dos clássicos alemães do século anterior, mais esbeltos e que lembram a estatuária clássica.[6]

Desnudo reclinado em uma paisagem. Esta pintura do século XVI da escola veneziana foi emparelhada com a Venus del espejo na coleção Haro, e talvez já antes.

Velázquez combina nesta tela dois temas tradicionais: A Vênus frente do espelho com Cupido e A Vênus tumbada.[6] Em vários sentidos, a pintura representa uma novidade pictórica: por usar como centro um espelho, e devido a que a mostra o corpo de Vênus de costas para o espectador.[3] Ao se encontrar a mulher de costas, fato pouco habitual na pintura de nus,[33] não resulta um nu provocativo. É uma inovação, um nu de grande escala que mostra as costas do sujeito, embora,[39] houvesse precedentes nas gravuras de Giulio Campagnola,[41] Agostino Veneziano, Hans Sebald Beham e Theodor de Bry,[42] bem como em duas esculturas clássicas que Velázquez conhecia e das quais fez vaziados em Roma,[2] para os enviar à coleção real espanhola entre 1650-51. Trata-se da Ariadna adormecida que atualmente se conserva no Palácio Pitti, em Florença, mas que então se encontrava em Roma; e do já mencionado Hermafrodita Borghese, escultura que, como a Vênus do espelho, tem marcada a curva que vai da cintura ao quadril. Contudo, a combinação de elementos na composição de Velázquez resultava original.

É possível que A Vênus ao espelho tenha sido produzida para formar um par com uma pintura veneziana do século XVI de uma Vênus deitada (que parece semelhante à obra Dánae) em uma paisagem, na mesma pose, mas vista de frente. As duas pinturas ficaram penduradas juntas durante muitos anos na Espanha quando estavam na coleção de Gaspar Méndez de Haro y Guzmán, mas desconhece-se em que momento foram colocadas juntas.[nt 16]

Nus na Espanha do século XVII

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Ticiano: Vênus com um espelho, c. 1555, é um cedo exemplo de Vênus representada no seu banho com Cupido. Nesta pintura, Vênus senta-se reta.

A par da obra Descenso al Seno de Abraham, de Alonso Cano, a Vênus ao espelho é considerada pelos especialistas um dos primeiros nus integrais da pintura espanhola[45][46] [nt 17] e o único pintado por Velázquez. Contudo, outros três nus do artista são citados nos inventários espanhóis do século XVII. Dois são mencionados na coleção real, mas podem ter sido perdidos no incêndio de 1734 que destruiu o Real Alcázar de Madrid. O terceiro está citado na coleção de Domingo Guerra Coronel.[23] Estes documentos mencionam uma Vênus reclinada, Vênus e Adonis[47] e o outro nu seria um Cupido e Psique.[12]

O nu era muito incomum na arte espanhola do século XVII,[2][3] sendo oficialmente desaconselhado. A Inquisição perseguia-o: as obras podiam ser confiscadas ou exigir-se que pintasse em cima; e os autores de obras licenciosas ou imorais podiam ser excomungados ou expulsos da Espanha por um ano.[48] Contudo, dentro de círculos intelectuais e aristocráticos, acreditava-se que os objetos de arte estavam para além das questões de moralidade, e havia muitos nus, geralmente mitológicos, em coleções privadas.[3] A coleção real dos Habsburgo continha despidos mitológicos, realizados por Ticiano e outros artistas venezianos renascentistas.[6] O patrono de Velázquez, o rei Filipe IV, amante da arte, possuía uma série de nus de Ticiano e de Rubens na sua coleção, e Velázquez, como pintor do rei, não devia ter medo de pintar um nu.[10] Colecionadores destacados, incluído o rei, tendiam a guardar os nus juntos numa sala relativamente privada; [nt 18] no caso de Felipe, o cômodo onde se retirava após comer, continha poesias de Ticiano que herdara de Filipe II, e os Rubens que ele próprio encarregara.[50] A Vênus estaria num cômodo semelhante quando esteve nas coleções tanto de Haro quanto de Godoy. A corte de Filipe IV apreciava [grandemente] a pintura em geral, e os nus em particular, mas … ao mesmo tempo, exercia uma pressão sem comparação sobre os artistas para evitar a representação do corpo humano despido.[47]

El Greco: Retrato executado em 1609 de frei Hortensio Félix Paravicino. Paravicino visava a destruição de todas as pinturas de nus.[50]

A atitude espanhola contemporânea para a pintura de nus era única na Europa. Embora semelhantes obras fossem apreciadas por alguns aficionados e intelectuais da Espanha, eram em geral tratadas com suspeita. As mulheres daquela época usavam decotes baixos mas, segundo a historiadora de arte Zahira Veliz, os códigos do decoro pictórico não permitiriam facilmente a uma dama conhecida ser representada desta maneira.[51] Para os espanhóis do século XVII, o tema do nu na arte era limitado por conceitos de moralidade, poder e estética. Esta atitude era refletida na literatura do Século de Ouro espanhol, como na obra teatral de Lope de Vega, A quinta de Florência, que apresenta um aristocrata que comete um rapto após ver uma figura com pouca roupa numa obra mitológica de Michelangelo.[50]

Em 1632,[nt 19] um panfleto anônimo, atribuído ao português Francisco de Bragança, foi publicado com o título de Copia de los pareceres de los ilustres catedráticos de las universidades de Salamanca y Alcalá de Henares, acerca de si es pecado mortal hacer pinturas deshonestas, y exhibirlas.[33] A corte podia exercer uma pressão em sentido contrário, e uma peça do famoso poeta e pregador frei Hortensio Félix Paravicino, que propunha destruir todas as pinturas de nus e que foi escrito para ser incluído no panfleto, nunca foi publicado. Paravicino era um conhecedor de pintura, e portanto acreditava no seu poder: as melhores pinturas são a maior ameaça: queimai as melhores delas. Braganza arguía que semelhantes obras deviam ser mantidas separadas do grande público, o que era de fato a prática comum na Espanha.[50]

Correggio: Danae, 1531, é um exemplo temporão de Cupido representado atendendo uma mulher deitada sobre uma cama. Nesta pintura, porém, a mulher é mortal, embora Correggio ainda preferisse o retrato de uma figura mitológica.[53]

Em contraste, a arte francesa da época com frequência representava mulheres com decotes muito baixos e apertados corpetes;[nt 20] porém, a aparente destruição, pela família real francesa, de pinturas famosas como a Leda e o cisne de Leonardo e Michelangelo, bem como a mutilação da composição de Correggio, mostram que o despido podia ser também controverso na França.[54] No norte da Europa era aceitável representar nus artisticamente cobertos. Entre os exemplos está a Minerva Victrix de Rubens, feita entre 1622–25, que mostra Maria de Médici com o peito sem cobrir, e O duque e a duquesa de Buckingham como Vênus e Adonis, de Anton van Dyck (1620).

Paradoxalmente, enquanto os nus femininos eram perseguidos, os nus masculinos eram comuns,[33] e o motivo, na opinião de Calvo Serraller, era que enquanto o nu masculino expressava melhor uma visão ideal, o feminino associava-se mais à carnalidade.[55] Na arte espanhola do século XVII, até mesmo na representação de sibilas, ninfas e deusas, a forma feminina estava sempre castamente coberta. Nenhuma pintura da década de 1630 ou 1640, quer de gênero, quer retrato ou pintura de história, mostra uma mulher espanhola com os seus peitos expostos; até mesmo os braços poucas vezes são mostrados descobertos.[51] Em 1997, o historiador da arte, Peter Cherry, sugeriu que Velázquez visava superar a exigência contemporânea de modéstia mediante a representação de Vênus de costas.[56] Até mesmo em meados do século XVIII, um artista inglês que fez um desenho da Vênus quando estava na coleção dos Duques de Alba destacou que estava sem poder pendurá-la, devido ao tema.[57]

Outra atitude totalmente diferente sobre o mesmo tema foi mostrada por Morritt quando escreveu a sir Walter Scott falando da sua bela pintura das costas de Vênus que pendurou sobre a chaminé, de maneira que as damas possam afastar a vista do chão sem dificuldade e os afeiçoados lançarem uma olhada sem dar espaço para concorrência.[17]

Édouard Manet: Olympia, 1863. Manet foi muito influenciado pelas pinturas de Velázquez, e em Olympia uma espécie de paráfrase do erotismo e ousadia do tema mostra claramente a herança da Vênus ao espelho.

Em parte devido a ter sido ignorado até meados do século XIX, Velázquez não encontrou seguidores e não foi amplamente imitado. As inovações visuais e estruturais deste retrato de Vênus em particular não foram desenvolvidas por outros artistas até recentemente, em grande parte devido à censura da obra.[58] O quadro permaneceu numa série de salas privadas em coleções particulares até ser mostrado em 1857 na Exposição de Tesouros Artísticos de Manchester, com outras 25 pinturas atribuídas a Velázquez; foi a partir deste evento que começou a ser conhecida como a Rokeby Venus. Não parece que tenha sido copiada por pintores, gravadores, ou reproduzida por outros artistas, até esta época. Em 1890, foi exposta na Royal Academy de Londres, e em 1905 pela Agnews, a galeria que a adquiriu a Morritt. Desde 1906 está exposta na National Gallery e tornou-se muito conhecida internacionalmente através de reproduções. A influência geral da obra foi portanto largamente atrasada, embora artistas individuais tivessem podido vê-la ocasionalmente ao longo da sua história.[59][nt 21]

A pintura de Velázquez exibe um momento de privacidade e distancia-se radicalmente das representações clássicas de sonho e intimidade que se encontram em obras da Antiguidade e na escola veneziana quando retratam Vênus. Contudo, a simplicidade com que Velázquez mostra o nu feminino, sem joias ou qualquer dos acessórios usuais na deusa, teve seguidores em estudos de nus posteriores presentes na obra de Ingres, Manet, e Baudry, entre outros.[58] Além disso, a representação da Vênus, feita por Velázquez, como um nu deitado visto de trás era uma raridade para a sua época, embora a pose tenha sido pintada por muitos artistas posteriores.[nt 22]

Manet, no seu cru retrato feminino Olympia, parafraseou a Vênus ao espelho na pose e insinuação de uma mulher real em vez de uma deusa etérea. Olympia chocou o mundo artístico parisiense quando foi exposta pela primeira vez em 1863.[nt 23] Olympia olha para fora, diretamente para o espectador, tal como a Vênus de Velázquez, embora esta o faça através do reflexo no espelho.

Notas
  1. Dados sobre o Hermafrodita Borghese constam de dois relatos do século XVII.[4]
  2. A Vênus ao espelho em último termo deriva do Hermafrodita Borghese.[5]
  3. López-Rey cita Aureliano de Beruete[7] que em 1898, baseando-se em analogias estilísticas, datou esta pintura em finais da década de 1650.[8]
  4. A partir de 1648, marquês do Cárpio. Anteriormente marquês de Heliche, título com o qual às vezes é mencionado. Foi embaixador espanhol no Vaticano.[9]
  5. Esta parece ser a tese que defendia Luis Monreal Tejada.[12]
  6. Levada para a Inglaterra por William Buchanan, um marchant escocês que tinha um agente na Espanha.[17][18] A respeito de como passou da coleção de Manuel de Godoy a aparecer em 1813 no mercado londrino, Monreal Tejada limita-se a falar de circunstâncias relacionadas à Guerra da Independência[12] A queda de Godoy ocorrera em 1808, com o Motim de Aranjuez, com o povo assaltando o seu palacete a 19 de março daquele ano.
  7. A pintura não foi universalmente aceita como obra de Velázquez quando foi apresentada ao público. O crítico James Grieg formulou a hipótese de ser obra de Anton Raphael Mengs — embora encontrasse pouco apoio para esta ideia — e havia mais de uma séria discussão sobre a possibilidade de o genro e aluno de Velázquez, Juan del Mazo ser o autor. MacLaren recusa ambas as hipóteses: As supostas assinaturas de Juan Bautista Mazo e Anton Raphael Mengs no canto inferior esquerdo da pintura são marcas puramente acidentais.[19]
  8. Os danos causados podem ser vistos na Wikipédia em inglês.
  9. Afirma-se que a face no espelho fora pintada por cima.[23] José López-Rey mostrou-se crítico com esta restauração, assinalando que foi limpado exageradamente e restaurado em excesso.
  10. Esta característica recorda os retratos de Filipe IV e Mariana de Áustria no espelho que aparece em As Meninas.[12]
  11. Porém, isto não parece claro a Wallace, citado na sequência.
  12. Segundo López-Rey, O corpo fluido de Vênus descansava sobre um pano cinza de escassos reflexos azulados.[35] Recorda este autor que os lençóis escuros eram algo escandaloso para a época pois, como observa numa das suas notas, citando Felipe Picatoste, uma atriz espanhola do século XVII provocou um escândalo quando foi sabido que usava lençóis de tafetá preto na cama.[36]
  13. Ao notar a semelhança da modelo nestas pinturas, dizia López-Rey que É evidente que Velázquez, para estes dois quadros - como também para 'As fiandeiras' e 'Uma sibila' (no catálogo da obra citada, sob os n.os 107 e 108) - trabalhou com o mesmo modelo, o mesmo rascunho ou, simplesmente, com o mesmo ideal de beleza. E, porém, nas suas telas reproduz duas imagens diferentes: uma de beleza celestial e outra, de beleza terrena.[35] Contudo, MacLaren não apoia estas sugestões; provavelmente entraria em contradição com o fato de a pintura ter-se produzido ou não estando Velázquez na Itália. A Coroação do Prado está datada em 1641–42; a imagem presente está alongada verticalmente em comparação com o original.[18]
  14. López-Rey considera que foi limpado exageradamente e restaurado em excesso em 1965. Como resultado de tudo isso, aparece impropriamente esboçado em alguns lugares e sobrecarregado em outros.[35] Contudo, o catálogo da National Gallery opõe-se considerando que a descrição de López-Rey sobre a condição da pintura resulta muito enganosa.[18]
  15. Na Vênus Adormecida de Giorgione, a paisagem provavelmente foi feita ou finalizada por Ticiano, depois da morte de Giorgione.
  16. Segundo Portús, é praticamente seguro que se perdeu o rasto da outra pintura depois de uma venda em 1925, mas foi recentemente redescoberta numa coleção privada da Europa.[43] Segundo Langmuir, as duas são documentadas no mesmo cômodo de um dos palácios de Haro em 1677.[40] A pintura foi identificada por Alex Wengraf em 1994 segundo Harris e Bull. Sugeriu-se uma atribuição a Tintoretto.[44]
  17. Tal como no caso da presente obra de Velázquez, a datação da pintura de Alonso Cano mantém-se imprecisa; esta última é colocada entre 1638 e 1653.[45]
  18. Tais pinturas eram quadros de gabinete. Calvo Serraller fala de íntimos 'studiolos' ou câmaras privadas.[49]
  19. Portús assinala que foi em 1673, mas isto parece ter sido um erro.[50] O capítulo Nudes da obra publicada pela Sociedad Estatal para la Acción Cultural Exterior (SEACEX) para acompanhar a exposição Spanish painting from El Greco to Picasso, que se refere à sua pesquisa bem como trata este tema, diz 1632, e menciona referências à obra de outros escritores anteriores a 1673, incluindo Francisco Pacheco del Río, morto em 1644, na sua Arte de Pintura.[52]
  20. As gravuras de artistas como Wenceslaus Hollar e Jacques Callot mostram, segundo Veliz, um interesse quase documental na forma e o detalhe do vestido europeu no segundo quartel do século XVII.[51]
  21. MacLaren mencionaria a existência de cópias ou gravuras anteriores, caso houvesse alguma.[18]
  22. A mais frequente aparição do motivo em finais do XVII e princípios do XVIII deve-se provavelmente ao prestígio da antiga figura do 'Hermafrodita'....Na arte renascentista o mais antigo exemplo de uma mulher despida e deitada de costas para o espectador, é a gravura de Giulio Campagnola, que provavelmente representa um desenho de Giorgione....[60]
  23. E quando Manet pintou Olympia em 1863, e mudou o curso da arte moderna provocando a mãe de todos os escândalos artísticos com ela, a quem rendia homenagem? A Olympia de Manet é a Vênus ao espelho atualizada - uma puta descende de uma deusa.[26]
Referências
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Ligações externas

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